


Não estou muito contente com o rosto do menino. Como é uma peça maior farei o molde, por enquanto não dá prá queimar. Vou trabalhar um pouco mais e tentar colocar uma mão do garoto...

Creio que inventei que meu avô morreu engasgado com uma espinha de peixe. Acreditei nisso por muito tempo, mas soube, recentemente, que sofria do coração. Inventei também que o estádio da Fonte Nova desabou. Na verdade ouve uma ameaça, um corre-corre, meus irmãos estavam lá dentro e Samuel chegou em casa com os joelhos ensangüentados. Talvez tenha ouvido falar que iria desabar e a imagem simplesmente grudou em minha mente ao ponto de poder quase jurar ter visto acontecer. Sempre pensei nisso e no cuidado com as espinhas de peixe.
Meu avô surge e escapa da minha memória como se não o visse entrar ou sair. Lembro-me de acordar certa vez pela manhã e encontrar chocolates sob o travesseiro. Fiquei de pé na cama e vi vovô lá em baixo, ao lado da banca de jornal, esperando um aceno meu. Lembro da expectativa de vê-lo naquele lugar, o que indica, talvez, que tenha feito isso outras vezes. Não recordo exatamente. A verdade é que lembro mais dos seus passarinhos do que dele. As cenas em minha memória em que ele, de fato, aparece, são pouquíssimas, o que me impressiona mais a respeito do que alimento por essas imagens. Sinto por ele uma ternura e identificação incríveis e hoje, como pai, são seguramente seu amor, caráter e atenção que mais imito.
Por vezes creio haver algo para se esquecer, como num sonho estranho. Talvez um certo constrangimento de gueto. Talvez um certo constrangimento pessoal. Se há algo que me intriga, por mais que esse ambiente tanto favorecesse a minha infância, é que minha vida sexual em nada, ao menos que eu me lembre, está ligado aquele espaço. Esteve sim ligado a minha casa e minha rua. Isso, agora, me parece claro. Justifica talvez pq trago tão separadamente, ao menos por enquanto, essas duas artes, a do corpo e a judaica. Por alguma razão não puderam se misturar. Parece exagero, mas não é. Um exemplo disso eram as minhas idas a Igreja Nossa Senhora de Nazaré, a poucos metros da sinagoga com o intuito de ver passar, após a missa, as meninas do bairro. Especialmente a Claudia, uma paixão de infância. Esse pode parecer um problema exclusivamente meu, mas é sintomático que em nossa pequena comunidade, ao menos na minha geração e algumas antes, não consolidassem nenhuma união conjugal, sendo raros até namoros mais sérios. A comunidade judaica, a partir da década de 80, é praticamente mista e mesmo entre os que saíram e sairiam da Bahia rumo ao Rio e São Paulo será difícil encontrarmos um casamento judaico entre eles.
Talvez isso se explique pela força da sensualidade “extra-muros”. Não estamos em qualquer lugar, estamos na Bahia e a Bahia de um momento especial, de muita música, muitas festas, diferentes das de hoje. Ainda não existiam a industria do Axé e a cidade era menor e mais de rua. Explico-me. Vivíamos a cidade mais de perto. Nossa infância e pré-adolescência se desenrolavam nas calçadas em frentes as nossas casas e apartamentos e experimentávamos ali a liberdade necessária para todos os atrevimentos e covardias. A vida judaica, em comparação a essa, era de fato protegida e problemática.
A despeito disso experimentei certa felicidade naquele ambiente judaico. Não sei se uma felicidade retrospectiva. Creio que não. Quando criança a sensação de pertencimento tem uma importância incrível, agora compreendo. Pertencer aquele universo, vê-lo incorporado a imagem de meu pai e mesmo a de minha mãe, explicarei o “mesmo” mais pra frente, me fazia bem. Aquilo que chamamos de identidade surge para mim agora como que constituída destes pertencimentos e, nesse sentido, aquela sinagoga era minha, aquele pai era meu e tudo isso me levava a este lugar: o de que eu era judeu.
Outra coisa importante era a língua hebraica. Para mim mais propriamente as letras. Fui alfabetizado mas, de fato, nunca cheguei a utilizar o idioma. Mesmo para o Bar-Mitzvá, e sinto certo constrangimento disso até hoje, realizei todas as orações de cor, sem compreendê-las o significado. A favor de mim falaria apenas que muitos outros fizeram o mesmo, mas de qualquer forma um sentimento de falta permanece. Acabei assimilando o idioma à minha maneira. Como sempre, me relacionei primeiro com a imagem e foi assim que as letras hebraicas se tornaram grandes amigas. Amo suas formas, seus desenhos, seus gestos, a ponto de pouca ou nenhuma atenção realmente ter dado aos seus significados.
Escrevendo isso me vem em mente outra história ligada aquela Igreja de Nazaré. Numa das missas, já namorando uma jovem carola, Rita de Cássia, me vi esquecido, com olhar para cima, a ver as pinturas do teto da Igreja, suas volutas e tantas outras imagens, envolvido especialmente nas amarras das formas que logo depois, já em São Paulo, com olhar embevecido sob as palavras do meu mestre Van Acker, fui saber tratar-se do Barroco.
Em fim, ainda hoje a escrita hebraica exerce sobre mim uma sensação de paz, de certeza, de beleza, de lugar de pertencimento. De alguma forma aquelas letras são minhas.
Talvez o mais problemático do judaísmo daquele tempo estivesse dentro da própria comunidade judaica. Uma comunidade pequena, um espaço pequeno, uma mentalidade talvez um pouco pequena também. Haviam os problemas das diferenças de situação financeira e, importante não negar, de formação também. Tem-se, às vezes, a idéia, principalmente fora da comunidade, que todo judeu possui letras, educação, uma boa formação em fim. Nem sempre é assim. Os diversos problemas que circulavam no ambiente daquele grupo tocavam a todos e bem a fundo. Mais pra frente acho que falarei dos meus percalços, mas por enquanto gostaria de rever e viver um pouco aquele espaço fabuloso que era a sinagoga da Bahia.
Estive por lá, como todos meus colegas, por toda a vida. Desde que nasci, provavelmente no colo de minha mãe ou da Nieta, até a entrada na escola, aos quatro ou cinco anos de idade, não sei exatamente. Lá permaneci como estudante até os nove e depois retornei aos onze, já como estagiário à jovem sionista. Fiz lá, naturalmente, meu Bar Mitzava, aos treze. Ao sair da Bahia tinha quinze e deixei para trás, por mais que minha estada em São Paulo tenha sido entremeada de idas à Salvador, a minha ligação com aquele espaço. Durante os anos que vivi na Bahia aquele prédio produziu simultaneamente tantas atividades que poderia enumerar uma centena entre tantos Yon Kipurim, São Joãos, casamentos, Cabalat Shabat, aulas de capoeira, danças, cantos e memórias.
Sim, memórias. Produziu, em não sei quantas gerações, uma enormidade de lembranças.
Era de fato um lugar mágico. Mágico e belíssimo. Espaços amplos, salas escondidas e misteriosas, uma sinagoga elegante e rebuscada com grandes janelas em forma de arco, uma escada em caracol em direção ao salão de festas no segundo andar, uma escada lateral em direção ao parque infantil lá de baixo (e por onde se passava pelo sonho sionista, uma pequena sala no subsolo da casa), as salas de aula, a sala da diretora, a lanchonete, a varanda do segundo andar, lugar disputado nos dias de festas, a escada lateral para cima, que poucas vezes se usava, a exceção dos dias de casamentos, a pequena área na frente da casa, seu muro e portão com grade.
É importante dizer, para não ficar uma impressão errada, que não era um imenso casarão. Os espaços eram próximos e se misturavam. Da sala principal se tinha acesso de um lado à escada caracol e do outro ao corredor das salas de aula que, passados não mais de 10 metros, dava na sinagoga. Em cada lugar uma centena de experiências que deixaram uma lembrança marcante mas que, por alguma razão, me parecem esparsas e rarefeitas.