sábado, 26 de janeiro de 2013

Texto integral do catálogo da exposição FUNDIÇÃO ARTÍSTICA NO BRASIL, 2012

A VISÃO DE UM ESCULTOR

O artista percorre um longo caminho entre a concepção de sua obra e a finalização do projeto. Após um período de trabalho criativo, que normalmente é extenso e dramático, é chegada a hora de transformar seu modelo em uma escultura em metal. A partir daí, a obra sai de suas mãos para atravessar uma jornada de transformações que implicam em moldagens, reproduções e ajustes, até obter-se a obra final. Este período é, para o artista, marcado por uma grande apreensão. Raríssimas vezes ele próprio é o responsável pela transmutação entre as matérias, ou seja, a execução de processos que transformem seu modelo original em uma escultura em metal. Deste modo, as obras escultóricas fundidas em metal são realizadas numa espécie de coautoria, e tal transposição de conteúdo será mais ou menos feliz a depender de muitos fatores, entre eles, não apenas as necessárias qualidades técnicas, mas, fundamentalmente, a sensibilidade com a qual está imbuído seu fundidor. 

Em 1990, realizei pela primeira vez em São Paulo reproduções de esculturas pela Fundição Rebelatto, no bairro de Pinheiros. Ao chegar, não pude de imediato reconhecer o local: na vitrine encontravam-se apenas algumas pequenas esculturas e placas de bronze, e os passantes jamais poderiam imaginar o que ocorria por trás daquela recepção. Ao atravessar o espaço reservado à clientela, achava-se um gigantesco galpão, onde se via uma infindável quantidade de bustos, santos e partes cortadas de monumentos em gesso, todos apoiados sobre prateleiras que forravam paredes com mais de 8 metros de altura. Nesse primeiro espaço eram usinadas as obras em metal. O barulho era ensurdecedor e havia ao menos quatro bancadas, com diversos artesãos trabalhando em peças de todos os tamanhos. Logo à direita, o galpão se expandia, dividindo-se em mais dois segmentos. No espaço do meio havia a central de fusão, onde ficavam fornos circulares de tijolos preenchidos com carvão incandescente e um espaço quadrado no chão, forrado de areia, onde os moldes, depois de retirados daquelas chaminés, eram enterrados para receber o metal líquido. O forno de fusão, se bem me recordo, também ficava enterrado no chão, de onde saía a panela de vazamento, com o metal a 1100oC. No último espaço se moldavam os originais, trabalhava-se a cera e era realizada, por fim, a moldagem com o material refratário. Havia ainda um anexo, onde eram estrategicamente feitas as pátinas. Uma vez que estávamos praticamente de volta à rua, era por lá que a obra pronta era retirada pelo cliente. Talvez houvesse naquela época cerca de vinte a trinta funcionários em atividade no local. Foi uma experiência marcante. Eu era jovem e pude assistir à realização de alguns monumentos e à recuperação de um grande Bruno Giorgi. Já naquele tempo, entre os artesãos, se ouviam as queixas sobre soluções pouco ortodoxas, como o uso de massas plásticas sobre o metal e corantes artificiais adicionados à pátina química, que causavam polêmicas e discussões.

A Rebelatto era, até cerca de cinco anos atrás, quando fechou suas portas, a mais antiga fundição paulista em funcionamento.

A prática atual da fundição artística no Brasil remete a uma tradição italiana que desembarcou em nosso país no começo do século passado, para servir ao Liceu de Artes e Ofícios, em São Paulo. As experiências anteriores a este período, frutos da Academia instalada pela monarquia no Rio de Janeiro, não deixaram marcas substanciais no que diz respeito às práticas e aos processos metalúrgicos. A história de São Paulo e do Liceu favoreceram uma propagação desta atividade, possibilitando que artistas e artesãos abrissem fundições particulares, tal como a do próprio Rebelatto. Ainda hoje podemos encontrar, nas fundições de obras de arte locais, diversos sistemas de produção similares aos utilizados há mais de um século, além de um jargão particular, de origem naturalmente italiana, para expressar procedimentos, insumos e instrumentos de trabalho.

Os fundidores de obras de arte geralmente adquirem na prática seus conhecimentos sobre o ofício e iniciam este trabalho sendo ainda muito jovens. Graças ao seu convívio com os artistas, nasce entre eles uma espécie de cumplicidade, uma vez que, a partir de certo momento, a obra é realizada, de fato, pelas mãos destes artesãos fundidores. Não é raro encontrar, entre estes profissionais, talentos genuínos e pessoas apaixonadas pelo trabalho artístico, entusiastas e incentivadoras de jovens iniciantes. Esses aspectos criam certo contraste entre o trabalhador braçal, acostumado a lidar com pesadas estruturas metálicas, e uma fina sensibilidade em relação ao universo artístico. Esses homens passam uma vida manipulando, recortando, fundindo e soldando peças que são, muitas vezes, verdadeiros poemas escultóricos, e que, embora justamente atribuídos aos seus criadores, deixam, porém, em seus fundidores, depois de finalizados, uma sensação de orfandade e missão cumprida, tão característica da criação artística.

A fundição de obras de arte, apesar de sua antiguidade e da relativa simplicidade de seus meios, persiste como uma prática viva. Isso se pode afirmar pelo emprego disseminado desta técnica pelas mais diversas tendências artísticas, desde as reproduções de antiguidades até as obras que utilizam largamente seus recursos em criações contemporâneas. São exemplos artistas como Niki de Saint Phalle, Anish Kapoor e Louise Bourgeois, além de escultores figurativos como o colombiano Francisco Botero, que cria suas esculturas exclusivamente para reprodução em metal. Outro setor que utiliza estes conhecimentos é o dos serviços de conservação e restauro de obras públicas e museológicas. Geralmente, essas obras demandam cuidados ou mesmo processos de restauração que implicam a refundição de partes, soldagem e pátinas, os quais precisam ser executados por profissionais especializados. Juntam-se ainda a essas demandas uma produção remanescente de retratos, obras sacras e objetos ornamentais e decorativos. Por fim, deve-se fazer referência ao mercado de brindes e premiações, uma vez que sua produção é uma atividade exercida por muitas fundições artísticas que encontram nestes segmentos um complemento para o faturamento da empresa.

Apesar deste cenário, ocorreu no Brasil, nos últimos quarenta anos, uma gradual redução no número de fundições artísticas, incluindo o fechamento de algumas referências históricas. Existem várias razões para esse fato, entre elas um descompasso em relação à renovação tecnológica, uma substancial queda de qualidade do produto final e a falta de ações por parte dos setores públicos, responsáveis, se não pela preservação da memória, ao menos por incentivar parte da renovação técnica e humana necessária.

Foi nesse cenário que, durante os últimos vinte anos, fundi minhas peças, em meio a um sentimento de perplexidade diante da dificuldade em realizar um trabalho compatível com as naturais exigências de uma obra de arte. Como cliente, sentia-me frustrado diante das obras que frequentemente recebia desfiguradas do seu sentido original, e atribuía esses problemas a uma imaginária incompetência do fundidor brasileiro. Precisei conhecer a realidade da fundição artística na Europa, voltar ao Brasil e ajudar o SENAI a implementar o Centro Técnico de Fundição Artística, em Osasco, para reconhecer que uma série de fatores externos inviabilizavam a produção qualificada.

Um desses fatores é um problema mais complexo e de difícil solução em curto prazo. Trata-se da inexistência de uma prática regulatória, que afeta particularmente a reprodução dos grandes escultores modernistas brasileiros. Muitos deles produziram esculturas em bronze de modo indiscriminado – sem as devidas inscrições referentes a tiragens, número de cópias e procedência das fundições responsáveis – e isso deu margem a uma reprodução ilimitada que, apesar das diferenças gritantes quanto à qualidade, ou por isso mesmo, se reflete de forma negativa sobre o mercado. O resultado inevitável foi a desvalorização da obra fundida em metal e o nivelamento de preços pagos a autores de importância notoriamente diferente. A indústria de fundição artística, corresponsável por esta situação, acabou colaborando com um cenário que, no final das contas, lhe é desfavorável. A consequência imediata é que mercado e artistas não pagam corretamente pela fundição de suas obras, e as fundições, desse modo, não conseguem se modernizar.

Um exemplo que esclarece esta questão é a recente venda da escultura L'homme qui marche I, de Alberto Giacometti, por US$ 104,3 milhões. Trata-se de uma obra fundida em metal, ou seja, que certamente possui um molde. Poderíamos imaginar que agora o proprietário desse molde reproduziria diversas cópias da peça, ao seu bel prazer. Ledo engano. É justamente a raridade da obra e a confiança de que é aquela numerada e fundida sob a supervisão do autor e exposta em vida por ele, sendo, pois, a escultura que representou para toda uma geração uma mudança de paradigmas na arte moderna, o que faz dela uma obra extremamente valiosa. Novas cópias poderão ser realizadas e, nesse caso, certamente apresentarão as inscrições que as tornem reconhecidas como “nova tiragem”, datada, de origem controlada, e que jamais alcançarão os preços das “originais”, inclusive para não depreciá-las, uma vez que estas poderão ainda percorrer um novo trajeto de valorização. É fácil imaginar que obras que atingem valores desta ordem (e nem precisaria tanto) justificam investimentos superlativos por parte das fundições artísticas responsáveis pelas suas reproduções, ou mesmo por tiragens de artistas bem colocados no mercado. Diante deste panorama, compreende-se que, em países onde a prática do controle de tiragens é respeitada e onde circulam originais confiáveis, exista uma grande variedade de fundições artísticas com padrões diferentes, das mais modernas — que frequentemente são as de longa tradição — às de menores recursos técnicos, mas que atendem a uma parcela importante do mercado, embora de exigência inferior. O registro sobre o metal do número de tiragens e da marca da fundição que assinala a origem da peça remete a práticas europeias do final do século XVIII. Ainda hoje, passados mais de duzentos anos, há uma legislação francesa, adotada também por muitos outros países, que normatiza essa atividade e garante ao mercado um padrão de preços relativos aos valores alcançados por determinadas obras e artistas. 

O afastamento, por parte das escolas e universidades, das práticas artísticas tradicionais, tais como a escultura, a gravura ou mesmo a pintura, também colaborou para ampliar a distância entre as novas gerações e a fundição artística. Hoje, poucos jovens brasileiros, mesmo graduados em artes visuais, conhecem minimamente os processos aplicados à reprodução de obras de arte em metal. Seus conhecimentos chegam, quando muito, à moldagem inicial sobre o original, mas se perdem à medida que o processo avança e as etapas se desenrolam, entre moldes, contramoldes, ceras e fornos. Poderíamos creditar essa desinformação às demandas e ofertas da contemporaneidade, como a computação e a velocidade com que se obtêm produtos e informações. Essa perspectiva, em certa medida verdadeira, não justifica a exclusão de diversos outros conhecimentos, não apenas de processos metalúrgicos, mas de toda uma gama de saberes que, além de sinônimos de nossa civilização, se modernizam a cada dia. Ao contrário, essa desinformação afasta uma parcela dessa geração de novas oportunidades de trabalho e, por outro lado, não permite às fundições artísticas contar com a colaboração de uma juventude que teria muito a oferecer quanto aos desafios que se apresentam para uma efetiva renovação.

Uma esperança para este futuro foi o encontro com o SENAI. Após uma série de viagens à Europa e América Latina pude apresentar à diretoria da entidade um panorama mundial sobre a fundição de obras de arte, demonstrando a defasagem relativa à atual situação brasileira. Rapidamente, percebeu-se a distorção que existia entre nossa capacidade industrial e siderúrgica e os padrões ofertados à sociedade pela fundição artística local, e que, neste cenário, o SENAI poderia prestar uma colaboração decisiva e eficaz, mediante a requalificação, modernização tecnológica e capacitação de mão de obra especializada.

 Este projeto, agora apresentado pela Exposição FUNDIÇÃO ARTÍSTICA NO BRASIL, realizada pelo SESI – SP, é fruto de cinco anos de atividades, que constituíram as etapas primordiais de estruturação para se estabelecer novos conceitos de trabalho. O SENAI investiu decisivamente na formação de uma equipe capaz de unir profundo conhecimento metalúrgico e sensibilidade artística, desenvolvendo um programa de capacitação que envolveu visitas aos principais museus e fundições de obras de arte em metal da Europa, cursos especializados e um convênio com a Pinacoteca do Estado de São Paulo. Somando-se a estas atividades, a equipe teve à sua disposição toda a infraestrutura da Escola SENAI “Nadir Dias de Figueiredo”, em Osasco, centro especializado em metalurgia, onde realizou testes laboratoriais, moldagens e fusões, desenvolveu insumos, trabalhando sobre as diversas etapas do processo de fundição artística pelo método de cera perdida e constituindo uma pesquisa sem precedentes sobre o tema no Brasil.

Uma experiência notável foi a dos dois anos em que pude receber regularmente esses técnicos em meu ateliê, para aulas de escultura e história da arte. Devo lembrar que a equipe era formada apenas por técnicos em metalurgia industrial, cujas relações com as artes visuais não passavam de curiosidade por determinados artistas e períodos. Uma das minhas preocupações era sensibilizá-los em relação à produção moderna e contemporânea com que possivelmente teriam que trabalhar, e desejando que essas obras pudessem contar com seu comprometimento profissional e, além disso, conseguissem tocá-los, permitindo-lhes estabelecer uma relação com a experiência estética moderna e contemporânea. Foi muito gratificante perceber que rapidamente os integrantes daquela equipe passaram a modelar com competência, além de desenvolverem, cada um ao seu modo, uma relação de proximidade com novos autores, não só no ambiente de trabalho, como em museus e exposições, que passaram a frequentar regularmente. Esse fator foi primordial para o comprometimento de toda a equipe com o desafio de alcançar os níveis de qualidade compatíveis com os novos padrões mundiais. 

Este projeto é também a oportunidade de reapresentar à sociedade nossos monumentos, não apenas pelo viés tecnológico, mas, sobretudo, como obras de arte. Nosso patrimônio de esculturas fundidas em metal, dos séculos XIX e XX, espalhadas por todo território brasileiro, é formado por obras de valor estético inegável. Contudo, a maior parte desses monumentos está localizada nos centros das grandes cidades, onde eles sofrem, como todo o conjunto urbano, das mazelas históricas do subdesenvolvimento – do qual, acredito, estamos saindo – situando-se muitas vezes em locais degradados, de difícil acesso e até mesmo perigosos para serem visitados.
Felizmente, esta não é a situação geral e ainda possuímos muitos monumentos – ao menos os principais deles – bem cuidados e em espaços públicos onde as comunidades locais podem usufruir deles com segurança e liberdade.

PORTO ALEGRE
Um bom exemplo é o Monumento a Julio de Castilhos, de Décio Villares, obra fundida na França na década de 10 e hoje instalada em frente à Igreja Matriz, em Porto Alegre, Rio Grande do Sul. A modelagem é sensível e extremamente competente, e o monumento reúne, em uma única obra, diversos “gêneros” escultóricos – o retrato, a estátua equestre, as alegorias, os santos – numa concepção de ocupação urbana bem planejada: a obra fica numa espécie de planalto que se alcança por uma escadaria guardada por dois cães de bronze, motivo de festa para as crianças que felizmente podem frequentar todo dia esse espaço. Ao lado do monumento, há um jardim e um parque infantil bem cuidados, além de uma vista privilegiada, onde os finais de tarde, mesmo nos fins de semana, são ponto de referência para a população.

BAHIA
Dois outros exemplos de monumentos que são elemento demarcador e referencial para a comunidade, destacando-se pela qualidade de inserção no espaço urbano, se encontram em Salvador, Bahia. O primeiro deles é o maravilhoso Monumento a Castro Alves. Trata-se de verdadeira obra-prima do escultor italiano radicado no Brasil, Pasqualle de Chirico. A localização da obra é privilegiada, situando-se no ponto de encontro entre Cidade Alta e Cidade Baixa, local histórico e uma das mais belas paisagens brasileiras. A obra não fica atrás. Para bem apreciá-la, é necessário ater-se tanto ao conjunto, de uma assimetria pouco usual, quanto a cada uma de suas figuras. À parte o belíssimo Castro Alves, chama atenção o negro abaixo, representado sem estereótipo e com uma expressão de independência que surge justamente por sua absoluta individualidade. Além disso, há o par de figuras laterais, uma negra recostada a um arcanjo, imagem idílica, porém não menos icônica, da relação entre uma África e a cultura ocidental. O segundo exemplo é o Monumento ao Dois de Julho, obra italiana modelada por Carlo Nicoli e fundida em Pistoia, incrustada no Jardim do Campo Grande, também no centro da cidade. Suas grandes dimensões e a relação com o espaço, preservada ainda hoje, magnetizam o entorno. Suas figuras alegóricas, animais e referências históricas encantam pela beleza e graça de seu conjunto, que reúne uma modelagem sedutora e uma estética quase rococó, com grandes espaços brancos entre as imagens de bronze.

Rio de Janeiro e São Paulo merecem um capítulo à parte, pois, como se sabe, em momentos diferentes, essas cidades receberam o melhor da fundição europeia, representada por artistas e artesãos que desembarcaram com a Missão Francesa e posteriormente, para formar o quadro de professores e funcionários da Academia Imperial de Belas Artes, na corte, e o Liceu de Artes e Ofícios, em São Paulo.

RIO DE JANEIRO
Muito se fala do conjunto de esculturas ao ar livre de Buenos Aires. Justiça seja feita, é excepcional, sobretudo pelo grupo de obras modernistas, em especial o Monumento ao General Alvear, de Antoine Bourdelle, e a Homenagem a Domingo Sarmiento, de Auguste Rodin – único monumento público oficial inaugurado em vida pelo artista, que amargou seguidas recusas na Europa. Cito a cidade portenha porque, entre os diversos atributos do Rio de Janeiro, por vezes não nos damos conta do acervo imperial e republicano, além de obras modernistas, que fazem daquela cidade um verdadeiro museu a céu aberto, onde as qualidades plásticas e principalmente urbanísticas dos monumentos fazem do contato com essas esculturas uma experiência única. Tal como o conjunto arquitetônico de Ouro Preto e região representam um retrato da nossa experiência barroca, o Rio de Janeiro, seu conjunto escultórico e seus museus, além da vizinha Petrópolis, oferecem um panorama vibrante sobre o Império e o nascimento da República. O volume de obras é tal que, numa distância de menos de 500 metros, na Praça XV, encontramos duas estátuas equestres de dimensões monumentais: o Marechal Osório, de Rodolfo Bernardelli, e o retrato de D. João VI, presente de Portugal ao Brasil. O impacto da proximidade de duas obras deste porte, bem como parte do conjunto arquitetônico do centro histórico do Rio de Janeiro, infelizmente é prejudicado por um gigantesco elevado que liga o bairro do Caju até a região da Praça XV, mas há notícias que será demolido, como parte das ações de revitalização da região portuária.

URCA
Dois outros monumentos podem também ser citados, cujas soluções formais, modelagem, competência metalúrgica e modo de ocupação urbana fazem deles experiências visuais excepcionais. Um é o Monumento aos Heróis de Laguna e Dourados, com expressivas esculturas de Antonino Pinto de Matos que, na Urca, ao pé do Pão de Açúcar e de costas para o Atlântico, formam um conjunto espetacular. Embora sua apreciação seja prejudicada por estar em local aberto e sem árvores ao redor, a obra encanta, sobretudo, pela imagem central sobre o pedestal, uma desconcertante figura alada de traços simbolistas, que se vê com tranquilidade, apreciando a concepção de todo o monumento, ao subirmos para um passeio de bondinho ao Pão de Açúcar.

SANTOS DUMONT
Outra obra especial por sua qualidade escultórica é a Homenagem a Santos Dumont, de Amadeo Zani. Localizada em frente ao aeroporto, ela é, porém, pouco visitada, pois a praça não oferece atrativos para um passeio pelo jardim, à chegada e saída dos voos. Fundido pelo próprio Zani e inaugurado em 1940, o monumento é provavelmente o ápice de sua carreira. Os corpos são modelados com virtuosismo e sensualidade, com leve rasgo simbolista, tão raro na estatuária brasileira como na pintura, contrastando com a tendência naturalista acadêmica representada por Rodolfo Bernardelli, do qual, aliás, Zani fora aluno. O escultor acabou por se fixar no Rio de Janeiro, onde estabeleceu a Fundição Zani, ainda em funcionamento no bairro do Santo Cristo, região central da cidade. Após sua morte, o irmão e o filho continuaram o trabalho da Fundição, responsável pela execução de todas as esculturas fundidas em metal para Brasília, incluindo os Candangos de Bruno Giorgi, os Evangelistas e os Anjos de Alfredo Ceschiatti, todas obras-primas do modernismo brasileiro.     

Penso, como escultor, que parte do desinteresse pelos nossos monumentos de gênero figurativo, acadêmico e neoclássico, vem de certa incompreensão das qualidades puramente estética dessas obras. Basta lembrar o que ocorreu com o Barroco e a arquitetura gótica, considerados sinônimos de mau gosto durante praticamente duzentos anos. O livro A catedral gótica, de Auguste Rodin, sobre os riscos de destruição das catedrais francesas, foi um marco na defesa daquela estética abandonada, e o modernismo brasileiro veio a salvar, em parte, o prestígio do nosso Barroco, inicialmente perante a intelectualidade, para depois se alastrar pela sociedade em geral. Hoje olhamos o Barroco com reverência, sendo seus casarios, costumes, vestuário e, sobretudo, suas obras de arte, especialmente valorizados e compreendidos como genuína cultura brasileira. Entretanto, estamos ainda muito próximos do século XIX, cujos valores estéticos – o ecletismo e, sobretudo, o academicismo, basicamente os dois pilares sobre os quais foi erguida a estatuária fundida em metal no Brasil – representam a antítese do que o modernismo nos ensinou a apreciar.

SÃO PAULO
Esse talvez seja um dos aspectos pelos quais não conseguimos usufruir livremente de uma série de monumentos que nos rodeiam. Vencido esse preconceito, poderíamos melhorar nossa relação com o espaço urbano, especialmente numa cidade como São Paulo, que passou por um processo de crescimento vertiginoso e, muitas vezes, arrancou suas esculturas para dar passagem às obras viárias. Seus monumentos e espaços públicos adjacentes poderiam ser reavaliados, ainda mais porque, somado ao legado acadêmico, a cidade possui um patrimônio modernista de envergadura, de artistas como Galileo Emendabili, Victor Brecheret e Julio Guerra. Em minha opinião, esses artistas se equiparam aos maiores escultores mundiais, e suas obras são o melhor argumento para prová-lo. Quando acordarmos para essa realidade, será com prazer que sairemos à rua em busca de praças, parques ou esquinas onde se encontram essas esculturas, tal como fazemos em tantos países que apreciamos visitar.

MÃE PRETA
Julio Guerra possui na cidade diversas obras, algumas em bronze, como a Mãe Preta, no Largo do Paissandu. No entanto, o ponto alto de sua obra é sem dúvida o Borba Gato e o conjunto de relevos e esculturas que realizou para o bairro de Santo Amaro. Nessas obras, Guerra mescla à sua formação escultórica erudita toda uma tradição folclórica nordestina, aproximando São Paulo de uma das culturas fundamentais para a história de seu desenvolvimento. Os pequenos bronzes do artista, de inspiração micênica, são verdadeiras obras- primas, uma das quais se apresenta nesta exposição. Curiosamente, essa peça, parte do acervo da família, era apreciada pelo autor pelas características de sua fundição, que apresenta diversas falhas, inclusive rompimento do molde, formando tiras de bronze coladas à peça, que o artista entendeu incorporar à sua obra.

MONUMENTO A RAMOS DE AZEVEDO
A Universidade de São Paulo hoje abriga o Monumento a Ramos de Azevedo, sob muitos aspectos uma obra essencial para a história da cidade. Paulista de nascimento, Francisco de Paula Ramos de Azevedo foi autor de grandes obras que povoam a paisagem arquitetônica de São Paulo, como o Teatro Municipal, o Palácio das Indústrias e o Liceu de Artes e Ofícios (atual Pinacoteca do Estado de São Paulo), do qual foi também o primeiro diretor.  O monumento a Ramos de Azevedo foi realizado por Galileo Emendabili, um célebre escultor italiano que, suspeito de cultivar ideais republicanos sob a monarquia, à época da emergência do fascismo, deixou o país e desembarcou no Brasil em 1923 para, em 1934, entregar à cidade a obra em homenagem ao arquiteto. A escultura foi moldada e fundida no próprio Liceu, com tal virtuosismo técnico que nos faz refletir sobre a rapidez com que nos tornamos capazes de realizar a fundição em cera perdida de esculturas daquele porte, e com tal qualidade de superfície e acabamento. Vale uma visita à USP para conferir in loco, mas, sobretudo, nos aproximando o mais possível das seis obras que compõem o conjunto que rodeia a base do monumento, para apreciar devidamente as qualidades etéreas e sedutoras das esculturas e as habilidades técnicas daquela fundição. Juntas, elas oferecem ao público uma experiência que só as grandes obras de arte podem propiciar.
                                                           
Sobre a localização da obra na USP, há muita controvérsia. Uns acreditam que ali o monumento está preservado e bem cuidado, mas outros pensam ser lamentável que ele não esteja mais próximo aos cidadãos. De fato, a obra já foi removida uma vez, quando instalada na frente da atual Pinacoteca, porém naquela época, para nossa sorte, o autor estava presente e supervisionou toda a reconstrução do monumento, definindo cortes, acompanhando novamente a soldagem e reimplantação das esculturas e pedestais, num processo complexo, cheio de atribulações e percalços. Mas enquanto se decide o futuro da sua localização – se decidido não está – não podemos deixar de visitá-la e usufruir dela, da Cidade Universitária e do privilégio que é possuirmos em nossa cidade esta maravilhosa escultura a céu aberto.

DUQUE DE CAXIAS
As obras espalhadas pela cidade de São Paulo de autoria de Victor Brecheret formam o conjunto escultórico modernista mais relevante do Brasil. Dentre elas, a estátua equestre do Duque de Caxias é um verdadeiro tour de force, em que o artista se impõe o desafio de equiparar-se aos maiores gênios da escultura universal dentro da tradição da arte de retratar cavaleiros. Para avaliarmos o alcance dessa obra, é necessário voltar a este gênero, cuja tradição remete à Antiguidade. Atravessamos séculos em que diversas obras-primas foram realizadas – do romano Marco Aurélio, localizado em frente ao Museu do Capitólio, passando pelo Colleoni de Verrocchio e o Gattamelata de Donatello, na Itália, além dos dois Luiz XIV, o de Versailles e o de Bernini, em Paris, e mais o General Alvear de Bourdelle, em Buenos Aires, ou mesmo os inumeráveis cavaleiros do florentino Marino Marini – para chegarmos, enfim, ao nosso Brecheret. Vistas estas estátuas equestres e muitas outras espalhadas pelos quatro cantos do planeta, poderemos finalmente perceber a imensa força e qualidade plástica desta obra genuinamente paulistana, modelada e fundida por nós, cujas soberbas qualidades formais e pureza de desenho, de um controle absolutamente impressionante para aquelas dimensões, revelam a genialidade do artista e a competência da execução.

Para a fundição artística, este também é um marco. As dimensões da peça são amenizadas pelo espaço e a altura em que está colocada. Se estivesse ao rés do chão, perceberíamos o aspecto colossal deste gigante de bronze, de tamanho equivalente a um prédio de doze andares. Cotejada com as principais estátuas equestres mundiais, podemos afirmar que o Brasil possui uma das maiores obras-primas do gênero. Sempre imaginei que a Praça Princesa Isabel, onde se encontra o monumento, deveria receber algum tipo de atenção diferenciada, transformando-se num espaço com atrativos sociais, esportivos ou culturais, além, é claro, de segurança, para que se pudesse usufruir o entorno e apreciar devidamente a escultura. Isto também facilitaria a visita de turistas, que teriam o distanciamento necessário para avaliar e valorizar essa obra que é um dos principais patrimônios artísticos brasileiros.

Detive-me sobre a apresentação de algumas esculturas porque acredito que, sem percebê-las e amá-las, não poderíamos avaliar a importância da tecnologia que foi capaz de preservar, durante décadas, séculos e milênios, essa arte tão misteriosa e primordial que é a escultura. Uma arte que serviu como nenhuma outra para compor signos de identidade de povos e culturas, representando-os pelos mais diversos tipos de marcos, dos históricos ou religiosos aos puramente estéticos da contemporaneidade.  O Brasil adquiriu com grande rapidez uma técnica exemplar e altamente sofisticada de fundição em metal para obras de arte, porém, tão rápida como foi sua “época de ouro” foi também o declínio e quase desaparecimento desta tradição. As poucas fundições artísticas oficiais hoje em funcionamento são fruto da coragem e perseverança de um grupo reduzido de artesãos, alguns deles ainda descendentes daqueles inumeráveis fundidores e artistas italianos que povoaram o Liceu.

Amadeo Zani, neto do escultor homônimo, é o símbolo dessa geração. Hoje, aos 74 anos de idade, 125 anos após a chegada do seu avô ao Brasil, ele recebe, na mesma fundição pela qual passaram Bruno Giorgi e Ceschiatti, artistas, estudantes e toda uma gente curiosa e interessada pela mágica simbiose entre o metal e o fogo. Zani, o avô, deixou para a cidade de São Paulo diversas obras, entre elas a Fundação de São Paulo, no Pátio do Colégio, o Verdi, no Anhangabaú e o Alfredo Maia, na Praça Fernando Prestes, em frente à Sala São Paulo, que o próprio artista considerava sua melhor escultura. Do escultor ao atual fundidor, foram três gerações que, em pouco mais de cem anos, ajudaram a implantar a técnica da fundição artística no Brasil, colaborando com todas as correntes artísticas do país no século XX, e que agora passa por um momento de profunda incerteza. Nada nos impede de imaginar que seu destino não seja similar ao da Fundição Rebelatto, em São Paulo, o que representaria uma nova perda para o país.

É à luz dessa situação que convém relembrar a história da fundição artística no Brasil, que poderia ser dividida em duas grandes etapas. A primeira, relacionada à chegada da Missão Francesa, no século XIX, envolve toda a produção de obras ligadas à Escola Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro, de cunho imperial ou republicano e que, apesar de não ter investido a contento na formação técnica, fomenta uma “cultura do monumento” e, com ela, uma demanda colecionista absorvida pelas fundições comercias. A segunda etapa, a partir da criação em São Paulo, no início do século XX, da escola de fundição do Liceu de Artes e Ofícios, gera o núcleo de onde se origina um trajeto de expansão da fundição e da escultura por todo o país, que atinge seu ápice justamente na época da fundição do Duque de Caxias de Victor Brecheret, entre 1948 e 1952, e, ao final da década, com as obras de Bruno Giorgi destinadas à Brasília. Após a década de 60, inicia-se um processo gradual de declínio até chegarmos ao momento atual, que nos apresenta um quadro grave. Possuímos agora poucas fundições de obras de arte pelo país, não ocorreu nesta prática renovação tecnológica, os insumos empregados, apesar de similares aos usados desde a implantação da fundição pelo Liceu, são de baixa qualidade, e a geração antiga, que sabia trabalhar artesanalmente, enfrenta o processo natural do envelhecimento ou já abandonou a prática da fundição artística.

Na década de 90, quando me iniciei na fundição, ainda conheci alguns desses senhores de idade avançada que haviam trabalhado com a primeira geração, e se podia sentir a vibração e energia daqueles tempos que pouco a pouco iria se apagando. O trabalho que o SENAI-SP inicia, com a criação do Centro Técnico em Fundição Artística em Osasco, pode vir a significar o começo de um novo capítulo neste processo. Na realidade, desde o fim das atividades de fundição do Liceu, nenhuma outra instituição investira na qualificação e modernização dessa tecnologia. Assim, nenhum recomeço poderia ser mais auspicioso, uma vez que o SENAI é sinônimo de ensino qualificado e que, sem a produção e transmissão do conhecimento, nenhuma ação poderá pretender-se duradoura.




terça-feira, 8 de janeiro de 2013

IV WORKSHOP FUNDIÇÃO ARTÍSTICA SENAI


PALESTRA NA PINACOTECA DO ESTADO DE SÃO PAULO

Caros,
Como parte das programações simultâneas à exposição Fundição Artística no Brasil serão realizadas durante o mês de janeiro, na Pinacoteca do Estado de São Paulo (programa Sempre às Quintas), uma série de palestras sobre o tema. Conduzirei as duas primeiras, sendo a inicial uma abordagem simultânea sobra as técnica aplicadas na fundição artística e um panorama sobre a situação brasileira. Já a segunda relata a experiência do Centro Técnico em Fundição Artística SENAI na Europa e um panorama sobre o setor de fundição de obras de arte na França, Espanha, Inglaterra e Itália. A entrada é gratuita.