sábado, 20 de fevereiro de 2010

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

PRAGMATISMO VERSOS ROMANTISMO

Por JOSÉ ANTÔNIO VAN ACKER

(Esse texto editei a partir de um manuscrito, segundo sua esposa Alda, onde ele registra uma de suas aulas e peça importante do seu pensamento. Eu mesmo assisti diversas vezes estes encontros quando, partindo do Goya, fazia uma reflexão sobre uma mudança importante e sutil do pensamento contemporâneo. ik.)

A partir da segunda metade do século XVIII uma grande alteração começa, pouco a pouco, a agir sobre a mente dos homens, e a Europa é o núcleo e nascedouro desta alteração profunda.
A princípio nada parece mudar, nem no mundo das artes plásticas nem da música; as roupas rebuscadas continuam a ser o figurino em voga e a cabeleira empoada segue sendo parte do toalete habitual. A alma do barroco continua presente, influenciando o “lay-out” do cenário cotidiano em que as pessoas se movem. O estilo neoclássico, é bem verdade, começa a despontar por toda a parte expressando uma mentalidade classicista, anti-barroca, a que muitos artistas passam a aderir. Porém, esta mentalidade não era nenhuma novidade, já no século XVIII a França de Luís XIV era classicista. E esta sempre foi uma tendência de parte da Europa.
Na verdade a grande mudança, essa alteração que começa a agir sobre a mente dos homens no fim do século XVIII não é um estilo, seria antes uma cosmovisão ou mundivisão diferente.
Esta nova mundivisão é geralmente conhecida pelo título de Iluminismo, e esta é uma filosofia ou uma ideologia que abriga uma idéia central, vital em seu núcleo, que é o pragmatismo.
O pragmatismo não é, pura e simplesmente, o espírito do prático. O pragmatismo, como surgiu neste momento, representa uma cisão, uma ruptura entre o mundo material e o mundo anímico ou psíquico. Este fato parece ser inédito na história da humanidade. Enquanto antes estes aspectos da vida cotidiana andavam lado a lado, em uma amálgama dentro da realidade, a partir de certo momento, estes dois hemisférios passam a se incompatibilizar.
Se observarmos, por exemplo, um galeão dos séculos XVII ou XVIII, veremos ali um exemplo extremo da fusão entre o prático e o psíquico; esses galeões eram completamente talhados como se fossem uma verdadeira catedral. De cima para baixo estavam repletos de ornamentos e figuras alegóricas. Eram muitas vezes pintadas de vermelho para assustar o inimigo, dizia-se “infundir terror” ao inimigo. Então temos aí elementos teatrais sendo usados num barco que serviria para guerra. A humanidade se dava ao trabalho de talhar rebuscadamente um objeto que poderia ser destruído num primeiro encontro bélico. Porém o fator lúdico, o caráter plástico da embarcação, criado por essas esculturas, colaboravam significativamente na função do navio, neste caso, o de vencer uma batalha.
Mas agora tudo passa a ser visto de maneira diversa. O núcleo pragmático inserido no Iluminismo alastra sua mentalidade pela Europa e toda vida psíquica passa a ser vista com extrema desconfiança, como um território a ser o quanto antes descartado; um território inútil, obscuro, absurdo e supersticioso, enfim como uma espécie de “bobagem ultrapassada”, que servia antes de mais nada para atrapalhar uma vida material, prática e objetiva, vista como a única capaz de promover o progresso da humanidade.
Temos então que algo novo surge no horizonte da História; algo que avança irresistivelmente, penetrando as mentes, alterando a visão do mundo. Esse elemento novo que poderíamos chamar de Iluminismo, Liberalismo, Racionalismo, mas que gravita em torno de um núcleo central que é a visão pragmática da vida, não é simplesmente um ataque aos males do Velho Mundo ou do mundo até então estabelecido, mas sim uma profunda revolução, que promove uma metade, a objetiva e racional, e rejeita a outra, subjetiva e irracional.
Como era de se esperar, essa ruptura, essa cisão entre elementos que até então conviviam num só todo, provoca um desequilíbrio e uma natural reação do lado prejudicado. Desta forma, o iluminismo mal tinha propriamente se estabelecido, e já surgia um movimento contrário; um movimento que no século seguinte também seria potentíssimo e igualmente irresistível, um movimento que enfatiza ou exalta, sublinha e exagera tudo aquilo que tinha sido tomado como algo ultrapassado. Esse movimento que reage à revolução pragmática é justamente o Romantismo.
Para nós que já vivenciamos uma revolução anti-burguesa, o Romantismo pode nos parecer um movimento revolucionário, mas aos olhos do burguês oitocentista sua essência se assemelha a um movimento reacionário.
Em contra partida ao raciocínio pragmático, que é a semente e nascedouro da instituição, da moral e do mecanismo econômico burguês, o Romantismo apresenta uma resposta enfática a todos os seus postulados, à razão lhe contrapõe a emoção, ao puritanismo uma liberdade incomensurada, ao pragmatismo o poder da imaginação. Por fim o que ocorrerá é que o romantismo encontrará um público mais afinado consigo justamente nas camadas mais populares e artísticas da sociedade.
Poderíamos dizer que a cisão provocada pelo pragmatismo perdura por todo século XX. O próprio Romantismo não logrou nem teve a intenção de restituir a unidade perdida que existia no Velho Mundo. O Romantismo justamente conta com essa mesma cisão para ser o que é, e tende inclusive a excluir o prático como o prático tende a excluir o romântico. Ambos continuam, em certo aspecto, vivos e em estado de guerra até nossos dias.

GOYA.

É no entreato deste desenvolvimento histórico, em fins do século XVIII, que se encontra Goya. Sua vida será uma ilustração das vicissitudes de um mundo que morre dramaticamente. Goya nasce mergulhado no Velho Mundo, no “Ancien Monde”, no “Ancien Regime”, vivencia a passagem, a transição iluminista, e morre já em pleno Mundo Novo, pós Revolução Francesa, e sua obra, tão tipicamente monumental é, talvez, o maior achado, a maior adequação plástica aos tormentosos acontecimentos de seu tempo.
Não vejo em Goya uma obra revolucionária, como tanto quer a crítica contemporânea, seduzida talvez por certos aspectos de sua biografia. Se Goya esteve profundamente engajado nas ideologias de seu tempo, outros também estiveram; se retratou seu tempo e o satirizou, outros o retrataram e satirizaram. Como todo pintor genial sua obra vale mais que o seu tema, vale mais que o seu tempo; vale em si, vale pictoricamente, e o que faz de Goya um gênio é justamente o extraordinário poder e autoridade de sua plástica.
Meu primeiro encontro com a produção do grande Paco, foi exatamente uma aproximação iletrada. Somente após os primeiros contatos, voltado ao aspecto pictórico de sua obra, é que tive acesso a sua história. Este novo estudo, digamos mais acadêmico, acabou por produzir no meu espírito uma espécie de estrabismo; em vez de um Goya, agora via dois, o Goya das pinturas, gravuras e desenhos, e o Goya das teses e ensaios. E o primeiro Goya estranhamente não combinava com o segundo.
Isso por muitos motivos, mas basicamente pelo seguinte: o segundo Goya, o Goya dos livros era uma figura revolucionária; era apresentado como alguém que tinha aberto as portas para o futuro da História da Arte. Já o primeiro Goya, o Goya visto apenas sob aspecto das imagens me parecia muito mais com alguém que encerrava um ciclo e não exatamente que inaugurava um novo, mesmo que pensemos nele como precursor do Romantismo.
O futuro do século XX, o futuro em sintonia com o pragmatismo e a burguesia nascente, estava em Mengs, estava em David e sobretudo em Winckelmann.
Ora, se quisermos fazer um cotejo sério e atento, exclusivamente plástico, entre Goya e David, Goya e Mengs, perceberemos o quanto Goya é antigo. A tendência para expandir o uso livre das regras da profissão e da estética, a força de expressão, a prática de soluções pessoais, todas estas características de uma arte não acadêmica, em si, não possui nada de novo. No tempo de Goya o novo é exatamente a Academia; a obediência a postulados teóricos e a imobilidade dentro de concepções abstratas.
O louvor ao Romantismo é uma fase transitória na crítica contemporânea aonde Goya tem sido considerado um revolucionário, como alguém que abriu as portas para o futuro. Isso porque Goya, indubitavelmente, influenciou gerações de artistas póstumos.
Porém a questão é saber o quanto o Impressionismo e o Expressionismo descendem da plástica de Goya, ou o quanto estão entrelaçados nesta luta entre o pragmatismo e o Romantismo, pois como sabemos, o Impressionismo nasce ligado a um pensamento científico no uso das cores e o Expressionismo, justamente busca a sua antítese, ou seja, a pura emoção e expressão sem regras ligada a impulsos primitivos e psíquicos.
Como disse, acredito que Goya não parece começar um ciclo, mas sim fechá-lo. Goya, para mim, seria o ápice, o ponto supremo que encerra plasticamente todo um esquema decorativo implantado por Miguel Ângelo no século XVI. E o período em que sua obra é realizada coincide com aquele momento de profunda mudança da mentalidade européia.
Na sua última fase, assistimos a uma expressão genial da senilidade, sua obra parece realmente se esfacelar, levando as últimas conseqüências todo um sistema formal, e a este esfacelamento, a esta explosão de sua obra, se atribuiu características de uma arte nova que surgi, quando em verdade acredito ser uma arte e um tempo que morre.
Já no fim da carreira na Quinta Del Sordo, Goya faz um destes célebres encontros de fim de vida com suas origens. Considerações biográficas à parte, do ponto de vista estritamente plástico, a Quinta Del Sordo é um profundo delírio, uma espécie de pesadelo de Goya com a Capela Sistina. Como se esta nos aparecesse num sonho mal; a mesma concepção formal, o mesmo sentido de unidade, o mesmo esquema decorativo, porém já espasmódico.
Então na fase francesa, sua última fase, Goya parece não se conter, não consegue manter as partes juntas; e então tudo realmente se dividi. E é justamente esta sua decomposição que atrai a sensibilidade dos artistas da nova geração.
Ao dar a última pincelada em seu último quadro, Goya realmente fecha um ciclo, e o que sobra e o que medra após este fechamento é na verdade uma planta mofina.

O SIMBOLISMO

No que pese as suas indubitáveis qualidades artísticas, o Impressionismo e o Expressionismo não são a expressão mais vital, mais viçosa deste grande outono que é o século XIX; se quisermos encontrar um florescimento outoniço mais vivo, mais novo, teremos que ir à Inglaterra, onde os Pré-Rafaelitas foram buscar, para assim dizer, atrás de Miguel Ângelo, sementes mais descansadas que pudessem reflorescer.
È com os Pré Rafaelitas e sem Goya que realmente um novo estilo passa a dominar a vida profunda do século XIX. O pré-Rafaelitismo é essencialmente um estilo, uma concepção estilística que em verdade prossegue com o Simbolismo, estende-se pela “Art Nouveau” e termina em Klint no século XX, enquanto que por sua vez o Expressionismo e o Impressionismo se mantêm como uma espécie de planta de estufa a ornamentar o gabinete dos críticos. O pré-Rafaelitismo, ou seja, o Simbolismo, ou seja, o “Art Nouveau”, um tanto desprezado pela crítica, se despeja pelas ruas, veste as damas, mobília as casas, invade até as fábricas, produz “design”, ilustra livros e influencia, como outrora fizera o Barroco, todo o ambiente cotidiano de uma época, incluindo o século XX até boa parte da década de trinta.
Com Klint finalmente tem seu apogeu esta grande florada outoniça e depois dele, depois do seu desaparecimento, sopram apenas os ventos hibernais do Modernismo.