domingo, 26 de junho de 2011

E DO BARRO SE FEZ TUDO


Certa vez me aconselhou a gravadora e aquarelista Iole di Natale a procurar minha cor subjetiva. 
Seria curioso esse tipo de classificação para um fenômeno físico, não fosse o fato da própria realidade objetiva da cor possuir certa poesia, uma vez que tudo se passa relacionado a capacidade da matéria em dar e receber íons e, por fim, dos cristais, capazes de refletir e absorver cor, que se formam deste conúbio. 
De fato meu caminho em direção à cor surgiu basicamente em torno de um desejo e consequentemente de um prazer. O prazer exclusivo proporcionado pela energia que emana de certas cores e que é difícil de explicar.
Afinal, por que o azul? Por que aquele azul e não outro? Por que aquele que detesto agrada tanto à alguns? Por que vibro, gozo, por que não me canso de olhar para aquele azul?
São razões, sem dúvida, subjetivas. 
O artista é  movido quase que exclusivamente por razões similares e nenhuma outro meio de expressão é tão cativante quanto a cerâmica, quando o assunto é cor.
Em primeiro lugar, pela incerteza. A cor na cerâmica, fruto de transformações criadas pelo calor, nos prega tantas surpresas quanto mais seguros estamos. Abrir um forno é, e sempre será, uma emoção, inclusive para os mais experientes. 
Logo, aquela cor criada é sempre, de algum modo, fruto de uma certa casualidade. Um pouco mais de óxido de ferro numa simples terracota a tornará mais avermelhada do que o esperado. Nos fornos a gás, cada parte interna do forno poderá aquecer de modo diferente fazendo o esmalte trabalhar mais ou menos do que o planejado. Sem falar das técnicas artesanais, como o rakú ou queimas à lenha, onde os resultados serão sempre uma incógnita. 
Olhamos para essas peças recém saídas dos fornos com uma curiosidade de quem procura a beleza. Seremos sempre surpreendidos por algo novo.
Em segundo lugar não se deve esquecer a qualidade dessa cor. Como sabemos, a cor é  a capacidade da matéria de absorver certos raios de luz e refletir outros. Justamente o que não é refletido, mas absorvido, é o que vemos. Será a "força" da geografia e energia molecular de cada matéria a responsável pela qualidade dessa cor.
Na cerâmica, a cor é o resultado das transformações/combinações dos minerais que compõem as massas cerâmicas e esmaltes, por intermédio do calor, e cuja cristalização cria um resultado extremamente estável e durável. Por isso encontramos hoje, nos museus ao redor do mundo, antigas cerâmicas egípcias, chinesas, gregas e seus esmaltes e engobes em prefeito estado, por vezes em cores vivas e vitrificadas, muitas delas com mais de 4.000 anos de idade. 
Podemos compreender melhor essa questão se compararmos essas cores às pigmentações e tintas sintéticas feitas na atualidade, a partir do petróleo, cuja constituição molecular é complexa e frágil. Esses corantes são compostos por cristais facilmente suscetíveis ao rompimento e produzem em pouco tempo o comum e triste desbotamento. Em cerâmica, ao contrario, se produz a cor utilizando os cobaltos, cadmios, lítios, cobres e tantos outros minerais puros, ou casados entre si, compostos com fundentes e vidrados. Após a queima, restam apenas sólidos cristais de cores.
Há ainda o fascínio da terra. As cores naturais proporcionadas pelas variedades de argila são passíveis de todos os tipos de adjetivos. São ternas, quentes, mesmo as brancas, são convidativas ao toque e nos remetem novamente a um mundo subjetivo: o amor ao chão, o prazer de andar descalço sobre a terra molhada, o barro, a lama e o corpo.
Por fim, o corpo. O corpo feito dessa substância, pois, como se sabe, “do barro se fez o homem”. Esse corpo que volta à terra. A terra que é feita de rochas, que são minerais, que são matéria inorgânica. 
Essa matéria "sem vida” é também responsável por ela, pois a maior parte da vida orgânica se alimenta do solo, de sua capacidade de armazenar sais e gerar vida.


Esta terra que nos recebe e nos alimenta também nos oferece a si própria como matéria moldável. Foi com ela que aprendemos a fazer potes, jarras, pratos, brinquedos, máscaras, enfeites... com ela nos divertimos e sonhamos. 
E assim chegamos ao âmago do homem, sua alma, que transforma por fim esta matéria inorgânica em magia e arte. 
Esse ciclo faz pensar no singelo e simples barro, em sua imensa colaboração, no plano prático e anímico, para nossa civilização. Sem dúvida, um patrimônio que, talvez, pela abundância e modéstia, não seja mais frequentemente lembrada, mas que cabe aqui ressaltar.
Podemos dizer que do barro se fez tudo, uma vez que com ele se fez o útil e o imaginário.

3 comentários:

Anônimo disse...

Israel,

levei seu texto para o Varal. Muito pertinente!

Arte-cidadania disse...

Gostei muito do texto, continuo aprendendo com voce!
Arlette

ciça callegari disse...

Adorei seu texto. Vale um Leminsky: "o barro toma a forma que vc quiser. vc nem sabe estar fazendo apenas o que o barro quer"